É necessário empretecer o luto
Por Silvana Aquino
O ano de 2020 inaugura um marco histórico que jamais poderíamos imaginar que faria parte da nossa trajetória. Fomos todos surpreendidos por uma crise sanitária decorrente do surgimento de um vírus desconhecido, avassalador e que fatalmente nos expôs a todos à consciência da fragilidade da vida humana. A COVID-19 deu início a uma jornada que exigiu a reformulação de nossas rotinas, a observância de cuidados rigorosos, na tentativa de evitar a contaminação, na medida em que rapidamente atingimos a um percentual elevado de pessoas afetadas e de mortes.
A crise sanitária deflagrou concomitantemente uma crise econômica sem precedentes, que prejudicouespecialmente os grupos populacionais mais vulneráveis e evidenciou a ineficiência da gestão de políticas públicas, apontando para o impacto das determinantes sociais na saúde. Além de idosos e portadores de comorbidades, a COVID-19 apresentou desfechos mais desfavoráveis em pessoas oriundas de comunidades periféricas, socialmente desprotegidas, vivendo em precárias condições de moradia – onde seguir a orientação de manter o distanciamento social é um desafio -, com menor acesso ao sistema de saúde e à aquisição de recursos para a manutenção da adequada higienização.
Os primeiros casos dos quais tivemos notícias foram de pessoas que haviam retornado de viagens ao exterior e que, portanto, representavam uma parcela da população predominantemente branca e socialmente privilegiada, o que sinaliza para a estrutura sob a qual nossa sociedade foi fundada. Somos uma sociedade que se constituiu sob a égide do racismo, que determina não apenas o direito de ir e vir, como também quem vive e quem morre, seja pela doença que não encontra os cuidados necessários, seja pelos efeitos secundários de um país em crise, vulnerado pelo sofrimento econômico e, em consequência disso, pelo aumento dos casos de violência que, na maioria das vezes, tem o corpo negro como alvo.
Foi também durante a pandemia que os casos de racismo ganharam forte repercussão no Brasil e no mundo. A morte de George Floyd desvelou um crescimento exponencial de ocorrências que resultaram em mortes por violência racial. Faltou o ar abafado pela ação da política de (in)segurança, representado pelos pés de um policial sobre o pescoço de um homem negro, assim como faltou oxigênio para milhares de pessoas pela ausência de uma ação efetiva do Estado. A morte não é democrática. Ela é apenas inevitável em algum momento da vida. No entanto, as circunstâncias nas quais ela ocorre demonstram que ela é mais evitável para a população branca do que para a população negra. Desde o período pós-colonial, nos acostumamos em testemunhar mortes precoces, por descaso ou várias formas de violência às quais pessoas negras são expostas. Assistimos passivamente à morte de Miguel, Kathleen, João Pedro, entre tantos outros.
Em 2006, o movimento das Mães de maio surgiu como uma resposta de enfrentamento de mães que tiverem seus filhos assassinados em chacinas ocorridas na Baixada Santista, e que continuam a acontecer nos dias de hoje (vide Jacarezinho e Vila Cruzeiro). São repetidas experiências de desamparo como consequência da violência racial. A recorrência dos casos nos coloca numa espiral de sofrimento que, contudo, não encontra espaço e tempo necessários para a vivência do luto coletivo que essas histórias nos provocam. As mortes ocorrem num cenário de espetacularização, documentadas pelas redes sociais, pelas reportagens televisivas, que registram a dor coletiva, normalmente experimentada pela comunidade, à espera de uma resposta que dificilmente chega. Quando não é em consequência da violência, o racismo se manifesta também nas grandes tragédias decorrentes de desabamentos e alagamentos provocados por fortes chuvas que atingem moradias apoiadas em estruturas frágeis, sem as mínimas condições de sustentação.
É o racismo ambiental que demarca onde pessoas pobres e majoritariamente negras conseguem morar até o próximo soterramento. Não há tempo para viver a dor da perda e do luto individual, pois há uma urgência para se manter vivo e forte, porque é necessário retomar as atividades que assegurem a sobrevivência de quem conseguiu escapar. Sob essas condições, só há lugar para o luto publicizado, ao mesmo tempo banalizado por ser tão habitual. E o que se banaliza não encontra um lugar de reconhecimento.
Um luto não reconhecido pode não autorizar o enlutado a vivê-lo, na medida em que ele não se sente acolhido em sua dor. A vivência do luto e suas variadas formas de manifestação são atravessadas por fatores culturais, socioeconômicos, familiares, religiosos e raciais. Portanto, é necessário considerar os diferentes contextos em que a experiência da perda acontece. Para cuidar do luto da população negra é fundamental compreender as particularidades trazidas pela discriminação e pela desigualdade racial e reconhecer o quanto essa realidade também é causadora de sofrimento.
É necessário empretecer o luto e considerar a dor invisibilizada pelo mito de que vivemos em uma democracia racial. Aliás, vocês sabem por que a cor preta é usada expressar o luto? Sim, isso também é fruto do racismo, essa grande fissura moral que precisamos encarar. A história é longa e precisa ser recontada. Por isso, é necessário racializar o luto. Para população negra, o luto é verbo. O luto é luta!
Silvana Aquino é psicóloga com atuação na assistência e no ensino em Psico-oncologia, Cuidados Paliativos e Luto.