Questões éticas em pesquisas com pessoas enlutadas – Parte I
Por Maria Júlia Kovács
Sou professora universitária há mais de 40 anos e nesse período orientei iniciações científicas, mestrados, doutorados e a minha área de estudos envolve o tema da morte em suas várias abordagens. Em todas elas surgem questões envolvendo a ética dos cuidados, a responsabilidade na escolha do tema, na aproximação com os colaboradores, na forma de coleta dos dados. Uma preocupação sempre presente com as pessoas em sofrimento, é para não infligir ainda mais sofrimento.
O luto é um tema que abrange a todos nós porque envolve a elaboração de perdas de várias ordens: pessoas com que se teve vínculo significativo; animais de estimação, hoje vistos como membros da família; todas as perdas significativas sem morte: como separações, adoecimento, acidentes, tragédias naturais e provocadas, guerras e a pandemia da Covid 19, que provocou uma avalanche de perdas que atingiram a população mundial. O luto é um tema universal, ao mesmo tempo que é vivido de forma singular. É uma crise que faz parte da vida, não é doença, mas provoca grande desorganização na vida, sofrimento e dor, que demandam energia psíquica para lidar com os intensos sentimentos vinculados às perdas e uma reorganização da vida sem a(s) pessoa (s) queridas e na perda da vida presumida.
Os princípios da bioética nos ajudam a balizar questões importantes referentes aos cuidados a pessoas em sofrimento e se estendem às pesquisas. O princípio da beneficência implica em buscar fazer o bem, este definido para o sujeito de pesquisa, não só ao pesquisador, respeitando-se sua subjetividade. O princípio da não maleficência, propõe não causar dano ou sofrimento, muito importante para quem já pode estar em “carne viva”. A autonomia é o princípio soberano para quem governa e toma decisões para sua vida. O princípio da equidade propõe a distribuição justa dos recursos e está relacionado com o desenvolvimento de pesquisas que favoreçam toda a população, respeitando as necessidades de cada grupo estudado com suas especificidades. A reflexão bioética consiste em trazer questões, trazer à luz os conflitos buscando compreender sua amplitude, apontando que respostas simplistas e convergentes podem levar a equívocos.
Ampliando a compreensão, a beneficência se traduz nos benefícios que uma pesquisa pode trazer à humanidade e esse é um ponto sempre a ser considerado, mas não deve ser o único; é fundamental considerar quais serão os benefícios dos participantes da pesquisa. Essa é uma questão importante porque antes do estabelecimento desses princípios, somente se consideravam os benefícios da pesquisa para o avanço da ciência e o prestígio para o pesquisador, sem levar em conta o possível dano aos colaboradores. Vários medicamentos foram assim testados, um exemplo, foi o estudo da penicilina para o tratamento da sífilis, certamente um grande benefício para a humanidade. O desvio ético se vinculou ao fato de que os participantes não sabiam que seriam contaminados com a sífilis e que uma parte deles não receberia nenhum tratamento para dessa forma os pesquisadores observarem a evolução da doença, com risco alto de morte. A justificativa para esse procedimento era o bem da humanidade e os danos a algumas pessoas seriam justificados, em nome desse bem maior. Eram escolhidos para compor esses procedimentos: detentos, pessoas vulneráveis, sem liberdade de escolha. (Caso [1] Tuskegee.)
Houve a constatação de que essas pesquisas causavam sofrimento e dano a pessoas que não tinham conhecimento do que seria feito com elas. O exemplo mais perverso dessa má prática ocorreu nos campos de concentração dirigidos por nazistas, em que torturas foram executadas com o objetivo de estudar os efeitos de temperaturas extremas, da falta de alimento para testar os limites do corpo humano e o uso de medicamentos que ainda não tinham seus efeitos conhecidos. Os prisioneiros não tinham escolha. Após o Julgamento de Nuremberg essas práticas foram condenadas porque infringiam a autonomia dos sujeitos e os direitos humanos. Atualmente é inconcebível que um sujeito, colaborador ou participante de pesquisa não tenha o conhecimento dos seus objetivos, os instrumentos que serão utilizados e que só participará das pesquisas para as quais é convidado e aceite de forma voluntária. O pesquisador precisa esclarecer quais serão os benefícios e a garantia de que os danos serão minimizados, sem provocar sofrimento adicional. Essa é a ética a ser considerada pelo pesquisador, pautada na informação e no esclarecimento dos sujeitos de pesquisa e na facilitação da decisão de participação no projeto, evitando coerção, obrigação ou sedução, valorizando a livre participação dos colaboradores na pesquisa.
O documento principal de participação em pesquisas é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que deve apresentar de forma clara os objetivos e o modo de participação do colaborador, que possa ser esclarecido em suas dúvidas, ter garantias de confidencialidade, sigilo, privacidade, respeito e dignidade e ter a liberdade de sair do projeto se assim o desejar. Ao pesquisador cabe cuidar de todos esses aspectos respeitando procedimentos éticos. Além desse comprometimento ético do pesquisador, os projetos de pesquisa no Brasil passam por avaliação pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) em que membros externos avaliam as questões éticas não percebidas pelo pesquisador entusiasmado com seu projeto. Esses Comitês têm como objetivo principal a proteção do sujeito colaborador da pesquisa.
(Na próxima semana publicaremos a Parte II – aguardem!)
[1] O Estudo da Sífilis Não Tratada de Tuskegee foi um experimento médico realizado pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos em Tuskegee, Alabama, entre 1932 e 1972. O experimento é usado como exemplo de má conduta científica. Wikipédia. Data de início: 1932. Data de término: 1972. Local: Condado de Macon, Alabama, EUA
Maria Júlia Kovács é professora livre docente sênior do Instituto de Psicologia da Usp. Membro Fundador do Laboratório de Estudos sobre a Morte. Membro do Comitê de Ética da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Autora do Livro “Educação para a morte: Quebrando paradigmas”.