Questões éticas em pesquisas com pessoas enlutadas – Parte II

Por Maria Júlia Kovács

Vamos considerar como ficam as questões éticas apresentadas acima para a realização de pesquisas com pessoas enlutadas, em sofrimento pelas perdas vividas. A compreensão do luto, a sua manifestação, a prevenção do luto complicado envolvendo fatores de risco e de proteção, diferenças de gênero, de fase do desenvolvimento, de grupos vulneráveis, de pessoas com doenças que ameaçam a vida, de pessoas com transtornos mentais; esses são alguns dos temas presentes em pesquisas atuais e relevantes. Elas têm um fator comum, o sofrimento de pessoas que viveram perdas significativas e que a sua participação em pesquisas poderá tocar em pontos sensíveis e conflituosos, por isso todo o cuidado é necessário. Quem toma a decisão de quem vai participar da pesquisa? Pesquisador e participantes em conjunto. Tarefa que não é fácil, mas que tomadas em conjunto ajudam no processo decisório. O pesquisador incluirá os participantes levando em conta os objetivos da pesquisa, deixando claros os critérios de inclusão e exclusão. O participante, mesmo em situação de vulnerabilidade, deverá ter a possibilidade de fazer essa escolha. Lembramos que quem pode melhor falar de sua experiência é o próprio enlutado. É importante considerar que muitos enlutados tem, nos seus depoimentos para a pesquisa, a chance de falar de sua experiência que, muitas vezes, familiares e amigos têm dificuldade de escutar e acolher o sofrimento.

Pesquisadores precisam se preparar para realizar pesquisas com leituras e reflexões sobre questões éticas. Uma pesquisa pautada na ética precisa ter um método pertinente para os objetivos a serem alcançados, buscando os melhores instrumentos de coleta. Na opção por entrevistas, o pesquisador deve facilitar a expressão da vivência do participante, ouvindo o que tem a dizer. Escuta, empatia, são importantes para que a narrativa seja do colaborador e não a indução do pesquisador aflito, que quer confirmar o que já sabe. A experiência clínica é benvinda no processo da escuta e possibilidade de compreensão dos dados. Não cabem interpretações ou orientações quando da coleta dos dados; pesquisa não é terapia, embora na sua narrativa, o colaborador pode elaborar sua experiencia. Depois da coleta, cuidados podem ser oferecidos pelo pesquisador, com o encaminhamento para serviços que possam acolher o colaborador, que assim o desejar.

A pandemia do Covid19 provocou profundas alterações no processo de luto com mortes de várias pessoas de uma mesma família e daqueles que não puderam acompanhar o final da vida de pessoas queridas, que souberam da morte por telefone, que não se despediram e não puderam oferecer rituais dignos de velório e enterro. Estiveram sozinhas em momentos de desespero e angústia. Uma situação de extremo sofrimento foi vivida por familiares e amigos enlutados, ao verem pessoas queridas morrendo por falta de vagas em enfermarias e unidades de terapia intensiva e pela falta de oxigênio e outros insumos. São situações de risco para o desenvolvimento do luto complicado. Há uma demanda de estudos sobre como essas situações afetaram os enlutados, para avaliar a intensidade de seu sofrimento e como puderam reorganizar sua vida. O conhecimento dessas experiencias pode subsidiar a criação de recursos de atendimento e a elaboração de políticas públicas de cuidados a enlutados. Avaliar o atendimento online enquanto o risco de contágio ainda estiver alto, como essa modalidade foi aceita pelos enlutados e como foi a volta para os cuidados presenciais são temas importantes de pesquisa. Por outro lado, é fundamental organizar os dados de pesquisa como fundamentação para organizar serviços de cuidados a enlutados, na esfera pública e a criação de políticas públicas para enlutados pela Covid19.

Apresentamos algumas questões importantes para se garantir, da melhor forma possível, condutas éticas em pesquisas sobre tema tão essenciais na existência humana, como é o caso do luto. Longe de esgotar o tema, foram apresentadas algumas reflexões, lembrando que as questões éticas não podem ser resumidas em alguns parágrafos. Apresentamos algumas leituras que podem aprofundar questões trazidas nesse texto 

 LEITURAS SUGERIDAS

Franco, MHP, Tinoco VU, Mazzorra L (2017). Reflexões sobre os cuidados éticos na pesquisa com enlutados. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 138-151.

Goldim JR (1999). O caso Tuskegee: Quando a ciência se torna eticamente inadequada. https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm

Goldim JR. (1997-2004) Por que relembrar o Tribunal de Nuremberg? https://www.ufrgs.br/bioetica/nuretrib.htm

Kovács MJ. (2021) Bioética e cuidados no final de vida. In: Kovács MJ. Educação para a morte. Quebrando paradigmas. Novo Hamburgo RS: Sinopsys, 135-162

Kovács, MJ (2008). Bioétca Clínica e sua Prática em Cuidados Psicológicos e Psicoterápicos. In: Siqueira JE, ZobolI E, Kipper DJ. (Org.). Bioética Clínica. 1ed.São Paulo: Gaia, p. 161-176.

Parkes, CM (1995). Guidelines for conducting ethical bereavement research. Death Studies. Filadélfia, v.19, p. 171-181.


Maria Júlia Kovács é professora livre docente sênior do Instituto de Psicologia da Usp. Membro Fundador do Laboratório de Estudos sobre a Morte. Membro do Comitê de Ética da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Autora do Livro “Educação para a morte: Quebrando paradigmas”.

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