Do Lodo surge a Flor de Lótus

Os cuidados espirituais na pandemia

 Por Regina Liberato

Semana passada estive no evento TJCC – Todos Juntos Contra o Câncer  para falar sobre Espiritualidade e câncer. Quando fui preparar minha apresentação, resolvi começar por algumas obras de arte espalhadas pela cidade durante a pandemia. O artista é Eduardo Kobra, um muralista que distribuiu uma mensagem de fé e esperança pelos muros da urbanidade.

Ao assistir à apresentação que eu mesma preparei, observando aquele colorido impressionante pleno de significado preparado pelo Kobra, retornou aos meus olhos as imagens do que vivi durante esses três últimos anos.

A pandemia abriu feridas profundas, sangrou dores diversas em todos nós. Esse acontecimento que atingiu o mundo de maneira impressionante desvelou a necessidade de cuidar da saúde mental, e surpreendentemente, também evidenciou os cuidados espirituais como um caminho de amparo e resiliência para todos os impropérios que estávamos enfrentando.

Por meio de uma pesquisa exploratória efetuada pelo Instituto Oncoguia, (ONG a qual pertenço através do quadro de voluntários) criado com o objetivo de ajudar o paciente com câncer por meio de projetos e ações de informação de qualidade, psicoeducação, apoio e orientação ao paciente, defesa de direitos e advocacy, apurou-se que, durante a pandemia, as pessoas acometidas de alguma maneira pelo câncer estavam utilizando os cuidados espirituais como estratégia de enfrentamento e ajustamento ao lidar com o cenário pandêmico e suas consequências.

Algumas transições de vida são caracterizadas como crises, que são situações que nos impõem exigências muito maiores do que os recursos que temos para lidar com elas.

Nesse momento, quando curvamos a coluna ao reconhecer que sozinhos não conseguimos ultrapassar aquele obstáculo que parece intransponível, quando os problemas parecem incontornáveis ou mesmo insolúveis, e  a vida parece se resumir em um buraco sem saída, experimentamos um estreitamento emocional que provoca insegurança, medo e desespero. O caos se instala. Nesse momento, a natureza nos impulsiona a buscar o equilíbrio ciclicamente, e há a necessidade de ir além daquilo que temos, e que é insuficiente para nossa sobrevivência em situações de crise. Assim, olhamos para além de nós mesmos, para o entorno, para o outro, para Deus. Transcender não é somente transpor limites e fronteiras; é também buscar o que há além de si, buscar o Outro.

A transcendência é uma das forças emocionais que a Psicologia Positiva define como conexão com algo que possui significado além da pessoa. Para Carl Gustav Jung, psiquiatra e fundador da Psicologia Analítica, a função transcendente carrega em si a ideia de união de polos, de opostos, um eixo de comunicação entre o Humano e o Divino.

Assim, pela prática espiritual  consolida-se essa conexão potente que restaura a possibilidade de caminhar apesar de, mesmo que seja em um terreno árido e ameaçador.

Talvez o importante nessa reflexão seja que ao transcender encontramos algo ou alguém além de nós, que tem o sentido, o valor do encontro com o Divino.

Ainda conforme os ensinamentos de Jung, além do instinto de sobrevivência, o homem também busca incessantemente pelo Sagrado em sua existência através do instinto.

Dessa maneira, os cuidados espirituais fundamentam o surgimento da fé e da esperança como alternativas eficientes para lidar com o desconhecido.

Sem o lodo não existe a flor de lótus, que emerge da escuridão em direção ao sol; uma entrega ao Deus Sol.

Viktor Frankl elaborou a ideia de que valor e sentido são concedidos àquilo que se considera mais elevado, por amor à alguém, um sacrifício; e que o sentido final do sacrifício é a entrega. Dar sentido então, é entregar-se.

Essa díade (fé e esperança) que promete metamorfoses, abriu caminho no rastro de sofrimento que o vírus lustrou em nosso destino. A fé nos possibilitou acreditar no impossível, e esperar brotar forças inacreditáveis. Mesmo com uma população em conflito constante, envolvida com ruídos que desconcentravam do essencial que deveria nos proteger de todas as fontes que nos atacavam; provenientes da ausência de uma organização suficiente na área da saúde; da falta de empatia e compaixão; da ignorância com relação aos direitos e deveres de uma comunidade; da falta de solidariedade e parceria; pela dor e sofrimento transbordantes das pessoas que perderam outras pessoas amadas sem sequer poder se despedir delas.

Lembrei do trecho de um texto de Rubem Alves que sustenta que a esperança é o oposto do otimismo. Para ele, “ o otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração”. Foi pela esperança que vislumbramos caminhar de novo sem máscara a nos proteger e sem medo de morrer sem ar.

“As florescências do outono eu as acho mais bonitas que as da primavera. As florescências de primavera são “por causa de”. As florescências de outono são “ä despeito de”.” outro trecho de Rubem Alves.

Encontrar sentido no meio da tragédia e esperançar “a despeito de” nos auxiliou a florescer. E não sei se já repararam, mas as flores que se lançam no outono como um grito de socorro são as mais belas de um jardim.

Nossa jornada pela vida é plena de perigos e possibilidades. O Tempo, o Senhor das Coisas, vai nos entregar aquilo que foi desvelado.

Chronos, esse Deus poderoso que não desperdiça nem um segundo do nosso Tempo, que manteve seu ritmo normal como se nada pudesse lhe mudar o percurso, cede seu lugar para Kairós, o Deus da Oportunidade, e pede reflexões e aprendizados sobre o que foi vivido.

Sobrevivemos.

E assim, celebramos a potência da transformação presente na própria flor de lótus, que encerra em si mesma o ciclo morte-vida-renascimento, quando à noite fecha suas pétalas, mergulha na água e antes de amanhecer se levanta das profundezas, ressurgindo novamente em direção a Luz.

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Regina Liberato é psicóloga, psico-oncologista e especialista em cuidados paliativos em consultório particular desde 1983.

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