“Quem quase morre, ainda vive; quem quase vive já morreu” – parte I
Por Denice Santiago
Carlos Drumond de Andrade em seu poema “Quase” nos fala muito sobre muitas coisas. Traz em um texto forte e doce que fala sobre o amor, fala sobre as relações que vivemos com este amor, fala sobre escolhas. O poeta constrói uma discussão sobre sermos e estarmos no controle de nossas vidas, de nossas escolhas em diversos pontos de nossa existência, ao concluir o texto, ele nos dá uma das frases que aqui trago para iniciar nossa reflexão: “embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”. E assim o é, acredito eu, a vida de uma mulher em situação de violência doméstica.
A violência doméstica e familiar contra mulher nos (permitam-me falar também de mim) leva a adoecer de diversas formas, enlutar diversos sentidos e sentimentos (amor, raiva, dores, sonhos…) através da forma como é construída. Há mulheres que estão quase vivas e já mataram em si emoções e desejos. As formas como a violência se apresenta, que em muitas vezes não identificamos ou denominamos o artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) nos traz a definição sobre os tipos de violência. É comum ouvir relatos de mulheres agredidas, mesmo as que fazem apenas o registro do crime de ameaça, que o “marido/companheiro nunca me bateu”; a violência física aparece assim como única percepção de violência; mas esse artigo nos sinaliza mais quatro tipos. Neste nosso primeiro texto vou comentar dois destes tipos de violência, os mais comuns, ou, os mais percebidos pela sociedade: violência física e patrimonial.
Para explicar sobre cada um destes tipos, vou exemplificar com falas de mulheres que foram protegidas pela Ronda Maria da Penha na Bahia, registros orais destas pessoas quando das visitas dos e das policiais em suas residências. Aqui, neste texto protejo-as mais uma vez trocando seus nomes pelo que acredito que cada ato delas ao romper o ciclo da violência e denunciar, significou para que pudessem hoje viver longe do relacionamento abusivo.
“Eu cheguei mais tarde em casa após o trabalho, ele me pegou pelos cabelos e jogou no chão.” (Força, 38)
“Estava na igreja ajudando as irmãs e ele me deu um tapa dizendo que eu quero é pegar o Pastor.” (Paz, 51)
“A gente estava numa festa e ele cismou que um cara olhou pra mim. Saiu me puxando e apertando meu braço.” (Razão, 28)
Muito embora pareça algo simples e banal, algumas violências físicas nos passam despercebidas no nosso cotidiano, embora ainda (e de novo) sejam estas a únicas violências que a sociedade costuma repreender uma vez que elas deixam marcas visíveis, ou que acarretam custos com tratamento médico, esta violência perversa e que se ancora na forma cultural como lidamos com conflitos, culmina em muitos feminicídios. Puxar cabelo, chutar, dar socos, dar tapas, tudo atrelado ao crime de lesão corporal, são violências físicas.
“Todo mês ele toma o meu cartão do benefício e gasta tudo no bar”. (Paz, 51)
Controlar a vida financeira da mulher, impedindo que ela use seus rendimentos ou posse para o que entender útil; reter documentos para que a mulher não possa usufruir de seus direitos (como o de ir e vir) e até mesmo destruir esses documentos. Quebrar móveis, objetos, rasgar roupas. Tudo atrelado ao crime de dano e apropriação indébita é violência patrimonial.
Como disse, talvez estas violências sejam as mais socialmente criticadas pois “lesam” quer seja o patrimônio ou o corpo da mulher, mas não concluem, infelizmente o que nós mulheres estamos susceptíveis. Identificá-las serve – e muito – para ficarmos ainda mais atentas e pedirmos ajuda: fiquemos atentas!
Denice Santiago é negra, mãe de João Paulo. Componente da primeira turma de mulheres da Polícia Militar da Bahia PMBA (sargento e Oficial), Tenente Coronela da PMBA, Doutoranda pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo, Mestre em Desenvolvimento Territorial e Gestão Social, ambos pela Universidade Federal da Bahia, pós graduada em gestão em direitos humanos pela Universidade do Estado da Bahia, graduada em psicologia pela Faculdade da Cidade, graduada em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar/UNEB. Idealizadora e comandante da Ronda Maria da Penha na PMBA; idealizadora e fundadora do Centro Maria Felipa – núcleo de gênero da PMBA, único no país; contemplada com o Diploma Mulher Cidadã Bertha Lutz 2017, concedido pelo Senado Federal; vencedora do Prêmio Claudia na categoria Políticas Públicas 2017; vencedora do Prêmio Barra Mulher 2017; primeira vencedora do Prêmio Práticas Inovadoras no Enfrentamento à violência contra mulher do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Comendadora da Cidade de Salvador – Comenda Maria Quitéria; e Comendadora do Estado da Bahia pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
- Foto de Nadine Shaabana