Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados
Por Sandra Rodrigues de Oliveira
“Aonde está você agora além de aqui, dentro de mim?” O ano era 2006, e eu, com apenas 3 anos de formada, havia acabado de ser aceita como aluna de Mestrado na PUC-Rio. Estava decidida e muito entusiasmada para iniciar meus estudos sobre luto por desaparecimento, mas também temerosa por saber que esse era um tema pouquíssimo explorado, especialmente no Brasil. Eu tinha uma única certeza – o título (esse trecho da música “Vento no Litoral” do Legião Urbana) – e milhares de dúvidas… afinal, quais são os impactos de um desaparecimento? Como enfrentamos uma ausência marcada por tantas incertezas?
18 anos se passaram desde que comecei meus estudos sobre o tema e Agosto, já há mais de uma década, tornou-se um mês ainda mais relevante para a causa dos desaparecimentos. Poucos sabem, mas, desde 2010, o dia 30 de Agosto foi instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, maior rede de apoio humanitário do mundo, ampliou esse escopo e considera a data como Dia Internacional dos Desaparecidos, incluindo todos os que estão com paradeiro desconhecido, ausentes-presentes de seus núcleos familiar e social. Um dos principais objetivos da referida data é dar visibilidade ao tema, que infelizmente carece de divulgação, de equipes especializadas e de recursos para busca do paradeiro de pessoas.
O primeiro ponto – e um dos mais importantes – é reconhecer que a vivência de ter uma pessoa amada desaparecida é, sim, um luto. Sabemos que o luto não se refere apenas a casos de morte, mas há quem não reconheça ou até mesmo desqualifique os casos de desaparecimento (seja minimizando a dor dos enlutados, seja culpabilizando a pessoa desaparecida ou seus familiares, por exemplo). Vale dizer que, nesses casos, o próprio enlutado pode não se reconhecer como tal, já que encarar o desaparecimento como um luto pode parecer desistência, esquecimento ou desamor de sua parte para com quem está ausente, já que pode voltar/ser encontrado a qualquer momento.
Nos casos de desaparecimento, adotamos o conceito de luto ambíguo justamente por ser uma vivência marcada por ambiguidades, sentimentos intensos e desordenados – esperança x impotência, culpa x determinação nas buscas, medo x obstinação. No luto ambíguo, a ausência-presença significa ausência física/paradeiro desconhecido tornando a presença emocional ainda mais forte, e o imperativo é reencontrar/localizar, concomitante a uma sensação de impossibilidade de dar próximos passos sem uma definição, sem as respostas. O desaparecimento físico e inexplicável é real, mas não há certezas, não se pode afirmar se o desaparecido está vivo ou morto. Não só faltam informações sobre sua localização, mas também não existe validação oficial da sociedade para tratar dessa perda: não há certidão de óbito, nem funeral, nem corpo.
Tudo isso torna o desaparecimento uma perda única e altamente devastadora; os enlutados ficam desorientados ou até mesmo paralisados (por onde começar, com quem falar, em quem confiar). Não sabem como se portar, afinal, o desaparecimento é definitivo ou temporário? Voluntário ou involuntário? As incertezas impedem a adaptação à ambiguidade, a reorganização dos papéis e das regras de suas relações com os outros membros da família e do convívio social, o restabelecimento do mundo presumido – agora totalmente instável e assustador. As emoções são intensas e confusas, por vezes, antagônicas. Há medo, raiva, culpa… há esperança, força, determinação. Enlutados aguardam, por vezes, durante anos, sem sequer receber novas informações sobre o paradeiro de seus desaparecidos, mas desistir não é uma opção.
Se você trabalha com luto e um dia receber um enlutado por desaparecimento, lembre-se: o desaparecimento é uma devastação. Quem busca seus ausentes descreve a vida (sobre)vivida nesta (ou apesar desta) ausência-presença como algo que beira o insuportável, mas também como a própria razão de viver. Não é só o luto, mas a vida ambígua… desta vida que segue, mas fica em suspenso… dessa vida que segue, mas machuca a cada toque… dessa ferida aberta que não cicatriza.
Sandra Rodrigues de Oliveira é psicóloga formada pela PUC-SP (2003), especialista em Psicologia Hospitalar (USP/ 2005), Mestre (2008) e Doutora (2014) em Psicologia Clínica de Casal e Família pela PUC-Rio. Psicóloga Clínica (2004 – atualidade). Terapeuta de Família no Instituto Priorit – RJ (2016 – atualidade). Coordenadora do Curso de Pós-graduação “Terapia Familiar Sistêmica no Tratamento do Transtorno do Espectro Autista” pelo CBI of Miami (2020 – atualidade). CRP 05/31825.