“Quem quase morre, ainda vive; quem quase vive já morreu” – parte II

Por Denice Santiago

Em nossa última conversa falamos sobre dois tipos de violência contra mulher elencadas na Lei Maria da Penha, a física e a moral, violências que impactam o corpo e o patrimônio de nós mulheres, mas, infelizmente não resumem o total de violências que sofremos.

Neste texto trago mais três dos tipos que o artigo 7º da Lei nos apresenta e faz entender: a moral, sexual e, para mim a pior, a psicológica. Os relatos abaixo, assim como no texto anterior, são falas das mulheres que foram atendidas pela Ronda Maria da Penha.

“Ele me gritou, xingou e esculhambou na frente dos amigos”. (Vida, 32)

“Gritou na rua que se ele não tivesse casado comigo, eu seria mulher da vida como toda minha família”. (Força, 38)

Tudo relacionado a humilhação, calúnias, difamações e até mesmo injúrias realizadas em público são violências. Aqueles comentários depreciativos que são feitos pelo companheiro quando está em um bar, por exemplo, na frente dos amigos quando a mulher passa na rua (ou não) sinalizando a essas questões, responsabilidades que não possuem é violência Moral. São os crimes de calúnia, injúria e difamação e dependem que a mulher faça a representação (formalize a queixa).

“Ele me agarrou a força e disse que se não transasse com ele, pegaria mulher na rua…” (Sensibilidade, 48)

Tanto a história de construção como a evolução histórica do nosso direto penal ignoraram o estupro conjugal. Ora este direito atribuía às mulheres responsabilidades e impedimentos na vida privada (“mulher honesta”). Ora, este direito garantia ao homem a possibilidade de garantias legais (campo público) para cometer crime de homicídio em nome do que chamava de honra. À mulher cabia o recato, e a obediência em nome do “débito conjugal” o que tornava as relações sexuais obrigatórias a partir do desejo do homem.

Após a lei Maria da Penha passou a existir o registro de estupro conjugal e é comum ouvir de todos se é possível acusar um companheiro de “estuprar a sua própria esposa”. O estupro não é a única forma de violência sexual na perspectiva da Lei Maria da Penha: proibir a mulher de usar contraceptivo, retirar preservativo durante a relação ou forçar o sexo sem este, forçar também a mulher a participar ou executar ato sexual que não queria, diversa da conjunção carnal normalmente aceita também são formatos de violência sexual.

“Vesti uma blusa decotada e ele ficou irritado. Mandou eu tirar dizendo que mulher dele não anda daquele jeito” (Força,38)

“Fiquei ajudando na igreja e quando cheguei em casa ele disse que eu estava de flerte com o Pastor” (Paz, 51)

“Estávamos discutindo e eu falei algo que ele não gostou. Ele deu um murro na mesa que me tremi toda” (Serenidade, 35)

Atendi uma mulher que orgulhosa me dizia “meu marido nunca me bateu” e completava em meio à sua dor e busca de entendimento “mas não posso ouvir a chave dele na porta que começo a tremer, porque se algo não estiver como ele quer, escuto gritos que chamam atenção dos vizinhos” e eu sempre me perguntava: quantas “surras” esta mulher já vivenciou e não chamou de violência?

De tanto a mulher ouvir que ela é louca, começa a duvidar de sua própria sanidade; de tanto ouvir que é burra ou incapaz, desiste de seus sonhos. É convencida a mudar a forma que escolheu para estar no mundo, seja a forma de vestir, dançar, perfumes, maquiagem, amigos. A violência psicológica tende a ir retirando a essência pessoal da mulher, seu construto de vida.

A Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006 é um divisor de águas em nossa sociedade. Antes dessa data há quem pense que “não existia” violência doméstica em nosso país. O que se entendia era que este fenômeno social, vil e cruel, tratava-se de “briga de marido e mulher”, e ao completar este dito popular, sinalizamos o poder das representações sociais e de como essas impactaram na vida de tantas de nós e, porque não sinalizar, na consolidação de masculinidades tóxicas. Este impeditivo de intromissão social que legitimou a violência de forma secular em nossas relações, levou muitas de nós a suportar dores infindas e até mesmo perdermos a vida.

Viver o quase é um caminho denso e perigoso, romper este lugar também o é. Precisamos pautar e entender que a mulher em situação de violência mata em si diariamente muito do que sonhou, do que pautou como caminho. Este é um luto (uma luta?) que precisa ser estudada, analisada e, quem sabe, possamos fazer construir nela (e em todas nós) a certeza maior que nós temos: a vida importa!

Mas isto é para mais um texto para este blog.


Denice Santiago é negra, mãe de João Paulo. Componente da primeira turma de mulheres da Polícia Militar da Bahia PMBA (sargento e Oficial), Tenente Coronela da PMBA, Doutoranda pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo, Mestre em Desenvolvimento Territorial e Gestão Social, ambos pela Universidade Federal da Bahia, pós graduada em gestão em direitos humanos pela Universidade do Estado da Bahia, graduada em psicologia pela Faculdade da Cidade, graduada em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar/UNEB. Idealizadora e comandante da Ronda Maria da Penha na PMBA; idealizadora e fundadora do Centro Maria Felipa – núcleo de gênero da PMBA, único no país; contemplada com o Diploma Mulher Cidadã Bertha Lutz 2017, concedido pelo Senado Federal;  vencedora do Prêmio Claudia na categoria Políticas Públicas 2017; vencedora do Prêmio Barra Mulher 2017; primeira vencedora do Prêmio Práticas Inovadoras no Enfrentamento à violência contra mulher do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Comendadora da Cidade de Salvador – Comenda Maria Quitéria; e Comendadora do Estado da Bahia pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.

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