Perdas no Contexto da Violência Doméstica: um luto complexo

Por Nazaré Jacobucci

“Tento esquecer o medo do presente, superar os traumas que sofri e enfrentar o mundo sem você” (Nijair Araújo Pinto)

A violência contra mulheres possui números alarmantes ao redor do mundo e, a cada ano vai tomando proporções estratosféricas. As mortes violentas por razões de gênero são um fenômeno global e vitimizam mulheres todos os dias, como consequência da posição de discriminação estrutural e da desigualdade de poder, que inferioriza e subordina as mulheres aos homens. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada três mulheres (cerca de 736 milhões de pessoas) é submetida à violência psicológica, física ou sexual ao longo da vida.

O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio – crimes de ódio motivados pela condição de gênero – segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Em comparação com países economicamente mais desenvolvidos, no Brasil se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido e 24 vezes mais que na Dinamarca. No Brasil, em 2022, houve um aumento significativo nos casos de feminicídios; foram 1.350 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.

De acordo com relatório elaborado pelo Serviço Latino-americano de Direitos da Mulher (LAWRS), com sede em Londres, no Reino Unido, estima-se que uma em cada quatro mulheres (1,2 milhão) sofra violência doméstica ao longo da vida, e onde até duas mulheres são mortas semanalmente por um parceiro ou ex-parceiro. Anualmente, mais de 100.000 pessoas no Reino Unido correm alto risco iminente de serem assassinadas ou ficarem gravemente feridas como resultado de abuso doméstico.

Como pudemos observar, a questão da violência doméstica é muito séria. Como consequência deste tipo de violência, as mulheres vítimas sofrem uma série de perdas e muitas vivenciam um processo de luto, muitas vezes, não reconhecido. Essas mulheres perdem, quando ainda estão no relacionamento: a independência, a segurança, o acesso às redes sociais, o sistema de crenças, a confiança nas pessoas e a esperança pelo final feliz que todos sonham ao se casarem.

Na outra ponta, quando as mulheres conseguem sair do sistema de aprisionamento físico e psicológico imposto pelo parceiro, outras perdas ocorrem: a moradia, as roupas (muitas não levam nem uma peça para o novo abrigo), o convívio com outros membros da família, a esperança de um futuro que ela esperava ter junto ao parceiro, a vida do jeito que ela havia sonhado e gostaria que tivesse sido, e a perda da autoestima. Há uma perda de si mesma diante da dor. Elas também vivenciam a autoculpa, a vergonha, sentimentos internos perturbadores e constrangimento. Ao sofrer a perda de um relacionamento, algumas sobreviventes de abuso doméstico agravam seu luto revivendo seu trauma. Ao estudarmos processos de luto observamos que este processo de luto em particular, inúmeras vezes, não é reconhecido abertamente, não é validado socialmente, não é observado publicamente. A pessoa não tem socialmente o direito de lamentar essas perdas.

Nos casos mais graves e extremos, quando ocorre a morte da vítima, são os familiares e amigos a vivenciarem um processo de luto. Por trás de cada uma das mulheres vítimas de feminicídio está uma família enlutada e marcada pela dor da ausência e pela brutalidade dos crimes, geralmente cometidos por maridos ou ex-companheiros. Neste sentido, quando a vítima possuía filhos, estes vivenciarão dois lutos simultaneamente. O luto efetivamente pela morte da mãe e o luto simbólico pela perda do pai, que em muitos casos será preso e retirado da cena cotidiana dos filhos. Neste contexto, estas crianças também experimentarão outras perdas reais e simbólicas que podem causar um trauma igualmente de difícil manejo e levá-las a um estado de depressão.  

Há muito a dizer e fazer quando se trata de violência doméstica. Processar o trauma do abuso no contexto doméstico é de uma complexidade ímpar. A assimilação, a compreensão dos fatos e a elaboração do trauma será uma jornada que será atravessada por meio de emoções como raiva, angústia, tristeza, culpa, arrependimento e alívio. Não será nada fácil lidar com essas emoções e suas implicações. Estas são complicadas, confusas, frustrantes e, por vezes, exaustivas, mas é importante que essas emoções sejam expressas e validadas.

Na busca de uma estratégia e solução para a violência doméstica, há a necessidade do envolvimento das autoridades públicas, serviços sociais, advogados, profissionais da saúde e sociedade civil no sentido de proteger estas mulheres e validar suas necessidades urgentes de segurança. Mulheres que estão vivenciando violência doméstica, física ou psicológica, precisam de ajuda efetiva para denunciarem seus agressores e preservarem com dignidade suas preciosas vidas.

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Nazaré Jacobucci é mestre em Cuidados Paliativos (Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa), especialista em Teoria, Pesquisa e Intervenção em Luto (Instituto 4 Estações de Psicologia), especialista em Psicologia Hospitalar (Santa Casa de São Paulo). Professora e escritora. Administradora do Blog Perdas e Luto: Educação para a Morte, as Perdas e o Luto. Membro da Sociedade Britânica de Psicologia, Filiada a Palliative Care Research Society of the United Kingdom. Psicoterapeuta em situações de perdas e luto. Associada Individual da ABMLuto.

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