O atendimento à pessoa enlutada e o desafio de lidar com a morte

Por Gabriella Pessoa

Muitos conhecem a frase de Jung sobre teorias e técnicas: “(…) A medicina prática é e sempre foi uma arte, e o mesmo se aplica à análise prática. A verdadeira arte é criação, e a criação está além de todas as teorias. É por isso que digo a qualquer iniciante: Aprenda suas teorias o melhor que puder, mas deixe-as de lado quando tocar no milagre da alma viva. Não são as teorias, mas apenas sua própria individualidade criativa que deve decidir” (JUNG, 1998, p.84, Tradução própria). Ao entrar em contato com a história de um enlutado, entramos em seu mundo repleto de sentimentos, memórias, sonhos interrompidos, fantasias e isso, ao mesmo tempo em que é uma tarefa desafiadora é também “realizadora”. 

M. H. Franco (2021) aborda com frequência as competências do psicoterapeuta ao trabalhar o processo de luto, reforçando o autocuidado – muito bem desenvolvido em seu livro “O luto no século 21 – Uma compreensão abrangente do fenômeno”. A autora aborda que, ao realizar o movimento de mergulhar na história do outro, com descrições que muitas vezes são compostas por sentimentos e emoções, o psicoterapeuta busca tecer significados – nomeando, organizando tempo e espaço nos detalhes minuciosos do mundo daquela pessoa, compreendendo, validando e acolhendo. E, para ingressar nesta intimidade, é necessário disponibilidade e abertura para uma compreensão que possibilite integração e elaboração. 

Lidar com a morte é uma tarefa árdua que nos permite compreender a vida e a história dos que já foram com o potencial de propiciar reconciliação do passado com o presente. Tradição, ritos, rituais, arte e religião afirmam e reafirmam a vida e a cultura. O desafio do psicoterapeuta é, portanto, caminhar ao lado de alguém que começou a andar, lidando com a existência, o ser/não ser e a realidade atual não muito bem-vinda sem a pessoa perdida. Essa incumbência exige uma proximidade e entrega despidas de nossas experiências prévias e pré-conceitos. 

Paulo Mendes Campos ao discorrer sobre a Encenação da morte, em seu livro: “O Amor Acaba” de 1944, compôs: 

“A vida nos quer, a morte nos quer. Somos o resultado da tensão ocasionada pelas duas forças que nos puxam. Esse equilíbrio não é estável. Amplo, diverso e elástico é o campo da força da vida, e vale a mesma coisa para o campo da morte. Se ficamos facilmente deprimidos, ou exaltados é em razão das oscilações de intensidade desses dois campos magnéticos, sendo o tédio o relativo equilíbrio entre os dois…” (p. 178). 

Essa dualidade é presente na vida o tempo todo, e nosso trabalho com enlutados é apontar, acolher e surfar junto. “Aguentando o tranco”, não desistindo e não deixando desistir. No livro Tudo é Rio de Carla Madeira (2021), chama a atenção o trecho: “A gente passa pela vida pelejando com o dilema de existir ou desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte e a vida. Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. Então, pede para a parte boa dar conta da parte ruim (p. 138)”. Muitos enlutados abordam o quão importante é ter um espaço próprio para pensar e falar de quem se foi. Este espaço de escuta deve ser límpido e dotado de empatia. 

Para concluir tal elucubração, do desafio de cuidar de perto dos aspectos de vida e morte:

“Ninguém realmente pode dizer que se defrontou com a vida se não estiver disposto a se atracar com a morte.” (HILLMAN, 2011, p. 23).

Referências:

CAMPOS, P. M. O amor acaba. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FRANCO, M. H. P. O luto no século 21: uma compreensão abrangente do fenômeno. São Paulo: Summus, 2021.

HILLMAN, J. Suicídio e Alma. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2011. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2013.

JUNG, C. G. Psychological Reflections- An Anthology of Jung’s Writings 1905-1961. United Kingdom: Routledge, 1998(1945). Edição do Kindle.

MADEIRA, C. Tudo é rio. São Paulo: Editora Record, 2021.


Gabriella Pessoa é psicóloga (CRP 06/112796), mestra em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP. Possui aprimoramento clínico no Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto – LELu, na Clínica Psicológica da PUC-SP. Aprimoramento Clínico no atendimento a adultos jovens na Psicologia Analítica. Curso de aprimoramento na Teoria do Apego. Facilitadora de Grupo de Apoio a Enlutados pelo Suicídio.

  • Imagem de Matthew Henry, em Unsplash

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