Por que precisamos falar sobre luto e saúde coletiva brasileira?

Por Ivânia Jann Luna

Falar sobre o luto e sua interface com a sociedade é um tema complexo. Contempla amplas discussões sobre diferentes significações históricas, sociais e culturais acerca da morte, do morrer e do enfrentamento de perdas de forma contextual e múltipla. Sobretudo,  porque os significados sociais, coletivos e individuais construídos sobre estes eventos retroalimentam políticas e diversas práticas sociais, por exemplo: do cuidado e direito à vida, do cuidado a pessoas doentes, do cuidado e lugar dado aos mortos, bem como àqueles que ficam, ou seja, às pessoas enlutadas.

No cenário internacional, observa-se a emergência do apoio profissional a pessoas em luto como uma prática de saúde que está presente nas agendas públicas e políticas do setor saúde. No Brasil, a relação entre luto e o setor saúde, especialmente com o campo da saúde coletiva, é um tema novo. Por isso, é um desafio que convoca a todos nós, brasileiras e brasileiros, a trazer inquietações em torno das necessidades de apoio, políticas públicas e modelos de cuidado sobre direito à vida e ao luto no Brasil.

Destaco inicialmente a necessidade de formação de uma consciência sanitária sobre a população de enlutados no Brasil em sofrimento agudo e complicado, após uma perda, e que precisa receber suporte profissional imediato e sistemático para suas necessidades de saúde e de enlutamento. Outra questão é a quase inexistência de debates sobre o luto e o cuidado ao luto nas políticas públicas brasileiras. Digo que é quase inexistente, pois tenho visto que em alguns estados e municípios brasileiros o tema do luto tem se colocado como uma agenda pública importante.

Cito a construção de diretrizes para apoiar pessoas que enfrentam perdas perinatais nas instituições hospitalares ou também pela discussão de estratégias posventivas para quem vive uma perda em decorrência da morte por suicídio. Porém, só recentemente foi aprovada a política nacional de cuidados paliativos e que define um olhar diferenciado para o atendimento às famílias enlutadas e cuidadores familiares em todo território brasileiro. Destaco também a importância dos ambulatórios de luto presentes em algumas unidades básicas de saúde ou instituições hospitalares universitárias da alta complexidade (ligadas às empresas brasileiras de serviços hospitalares e às práticas de ensino das universidades). Também a presença, nas principais capitais brasileiras, de redes solidárias e organizações não governamentais com foco no cuidado compassivo e apoio compartilhado ao luto.

A grande maioria das mortes não naturais e os lutos decorrentes está subnotificada como evento grave e catastrófico que impacta a vida e a saúde das pessoas de diversas formas, seja nas práticas cotidianas dos profissionais ou no desenho das políticas públicas do setor saúde ou social e previdenciário. Neste tema, destaco as mortes por acidentes de trânsito, de trabalho, suicídio, homicídios, bala pedida, etc. Há também as situações de perda advindas do refúgio, migração ou os apátridas, bem como, as perdas decorrentes dos desastres coletivos, ambientais, endemias e a pandemia da Covid-19. A todas elas cabem a seguinte pergunta: como os enlutados irão lidar, expressar, cuidar de um luto e seguir com a vida de forma concreta e singular a partir de situações complexas de perda?

Quando tento dar uma resposta a esta questão como profissional de saúde e professora universitária, vejo que os desafios e dilemas são muitos. Vejo uma ampla massa de enlutados nas situações referidas que não tem a quem recorrer para falar e ser ouvido, no que é singular acerca de suas perdas e dores. Já os profissionais do amplo espectro da segurança pública, jurídica, saúde e educação, e que lidam diariamente com pessoas que enfrentam perdas, não sabem como orientar acerca dos possíveis locais de apoio ao luto disponíveis na sua cidade.  Ademais, o desafio de seguir em frente com a vida é ainda maior quando aguço o meu olhar para as iniquidades e desigualdades vividas por grande parte da população brasileira.  

Vejo relações de exclusão, poder e opressão com pessoas pretas e pobres que perdem entes queridos por situações de violência. São muitos enlutados que vivem a reprodução de práticas coloniais e medicalizantes que reforçam estigmas e marginalizam o que é singular e específico na vida de cada um. Segundo os dados do Atlas de Violência no Brasil (2017, 2018 e 2019), são os jovens entre 15 e 29 anos de idade os que mais morrem, sendo o perfil das vítimas dos homicídios, as pessoas pretas. O Brasil é o país que mais mata travestis e transsexuais, conforme indicam os dados publicados em 2018, pela Agência Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA). A maior parte das vítimas é composta por mulher transexual, sendo 80% dos casos identificados como pessoas pretas e pardas.

Considero importante iniciar no Brasil, num primeiro momento,  a discussão sobre luto e os pressupostos da saúde coletiva que norteiam o Sistema Único de Saúde na defesa da vida, como: universalidade, integralidade, equidade, territorialidade e intersetorialidade (conjuntamente com os marcadores identitários interseccionais de raça, gênero, sexualidade, deficiência, inserção social, entre outros). Num segundo momento, iniciar fóruns de discussão sobre um modelo de cuidado ético-político para o luto, com estratégias preventivas, clínicas e educativas em diversos setores (saúde, social, educação e justiça) e em parceria com propostas comunitárias (comunidades compassivas, redes solidárias) e movimentos sociais da sociedade civil (“do luto à luta”*).

Fazer discussões ético-políticas sobre o luto na sociedade brasileira, refletidas pelos amplos pressupostos do campo da saúde coletiva, poderá trazer um olhar utópico “necessário” para se pensar o apoio ao luto como defesa da vida e promoção da saúde, sendo estes alguns dos fundamentos para se resistir à precarização das vidas não passíveis de luto em todo o território nacional. Hoje, este é o meu olhar! Vamos juntos pensar nisso e fazer acontecer!

* Expressão comumente utilizada por movimentos de mães em luto por violência policial, mães de desaparecidos políticos.


Ivânia Jann Luna é psicóloga, professora universitária da UFSC e coordenadora do Laboratório de Processos Psicossociais e Clínicas do Luto.

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