Reflexões para final de ano, pensando em quem vive muitos finais indesejados

Comitê de Relações Internacionais da ABMLuto

O Comitê de Relações Internacionais da ABMLuto, voltado para as questões de perdas e lutos vividas por pessoas na situação de migração, refúgio, afastamento forçado de suas origens, apresenta nesta publicação suas reflexões sobre essa  experiência particular de luto e oferece sugestões para, por meio da arte, possibilitar caminhos de entendimento, sensibilização, consciência,

O luto é um processo universal, mas, para os migrantes e expatriados, pode ser ainda mais devastador, pois não se limita à perda de um ente querido ou a uma tragédia específica, ele se estende à perda de um mundo inteiro. Ao deixar seus países de origem, suas casas, suas famílias e a familiaridade de sua cultura, essas pessoas se veem forçadas a viver um luto constante, marcado pela ausência de tudo o que conheciam e amavam.

A partida não é apenas uma mudança de endereço, é o rompimento com uma identidade construída ao longo de toda uma vida. Para muitos, a saudade se mistura com a sensação de perda de suas raízes, de sua origem, de sua história, um vazio profundo que não pode ser preenchido com o novo país, a nova casa ou as novas amizades. Mesmo que a adaptação seja possível, o luto permanece ali, doloroso, silencioso e persistente, como uma sombra que se recusa a desaparecer.

As perdas são múltiplas. O migrante perde a proximidade com seus entes queridos, o vínculo com a língua materna, as tradições que moldaram sua infância. A saudade de eventos que antes pareciam rotineiros, como uma festa de família ou uma simples conversa na esquina, torna-se uma dor insuportável. A cada aniversário distante, a cada evento marcante em sua terra natal do qual não pode participar, o luto se faz presente, reforçando a sensação de que parte de si ficou para trás, enterrada sob o peso da distância.

Os migrantes muitas vezes não têm o espaço necessário para chorar suas perdas de forma plena, pois a urgência da adaptação exige muito deles, e, por vezes, parece impossível de sustentar. Precisam seguir em frente, estabelecer novas rotinas, novos laços, enquanto a saudade os corrói por dentro. O dilema entre vivenciar o luto e se integrar à nova realidade é um desafio silenciosa, que pouco é compartilhado e muitas vezes não é visto por quem está à sua volta.

Não se trata apenas de tristeza que está presente nssa vivência do luto. Trata-se  de um constante processo de reconstrução. Trata-se de aprender a viver com o que foi perdido, sem a promessa de que as feridas um dia se curarão completamente. O migrante, em sua jornada de reinvenção, carrega consigo uma bagagem de dor e também de resiliência. Em seu processo de luto, recorda suas perdas, sente o vazio e as dores, podendo vivenciar a solidão como um meio de reconexão com o próprio ser. O luto, embora devastador, também traz uma oportunidade de ressignificação e construção de uma nova compreensão da vida e de si mesmo.

A dor do migrante é muitas vezes invisível, mas é real e profunda. Reconhecer isso é um primeiro passo para oferecer não apenas acolhimento, mas também uma escuta atenta e empática a quem carrega consigo a dor do exílio, da saudade e da constante busca por pertencimento.

Sugestões de filmes e documentários:

Filme: “As Nadadoras” (Netflix). Direção: Sally El Hosaini (2022)
Duas irmãs deixam a Síria devastada pela guerra e, contra todas as probabilidades, percorrem um longo e perigoso caminho em busca de um novo lar. As duas são apaixonadas por natação e sonham competir nas olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. Aborda o não pertencimento e as possibilidades de construir novos vínculos.

Documentário: Adelante – A luta das venezuelanas refugiadas no Brasil (YouTube ou Globoplay). Direção: Luiza Trindade (2022)
O documentário brasileiro mostra o cotidiano de oito mulheres venezuelanas refugiadas no Brasil. Elas percorreram 214 quilômetros para abandonar a fome, o machismo e os confrontos políticos.

Filme “O Trem Italiano da Felicidade” (Netflix). Direção: Cristina Comencini (2024)
Aborda um episódio marcante da história italiana do pós-guerra. Ambientado em 1946, o filme narra a jornada de Amerigo Speranza, de sete anos, que vive com sua família em condições de extrema pobreza no sul da Itália. Como parte da iniciativa solidária dos “Trens da Felicidade”, Amerigo é enviado ao norte do país para ser acolhido por uma família que lhe oferece melhores condições de vida, ainda que temporárias. A história aborda temas como desigualdade, solidariedade e reconstrução social, enquanto revela as complexas relações humanas que se formam em meio ao desespero e à esperança. Para além de um drama histórico, o filme destaca o papel transformador da empatia e da cooperação em cenários de vulnerabilidade, conectando pessoas de diferentes realidades em busca de um futuro mais digno. Do ponto de vista das relações internacionais, “O Trem Italiano da Felicidade” é um lembrete poderoso sobre como crises humanitárias podem ser vividas com ações que promovem o diálogo, a união e o enfrentamento de divisões culturais e econômicas.

Vídeo-artigo:  Mensajeros de las malas noticias. (YouTube). Direção: João Wainer (2016)
Mesclando uma estética poética à linguagem jornalística, o vídeo-artigo oferece um mergulho nos dilemas e dificuldades enfrentados pelos migrantes que buscam melhores oportunidades e condições de vida na maior metrópole da América Latina. Do tanzaniano morador de rua ao músico congolês, o documentário retrata os desafios cada vez maiores colocados aos governos das grandes cidades diante dos aumentos dos níveis de deslocamento de pessoas no mundo. Apesar de as migrações serem parte fundamental da história da cidade de São Paulo, sendo responsável pela confluência de um raro patamar de diversidade cultural e étnica, a preocupação com a articulação de políticas públicas específicas para a população migrante que vive na cidade só tomou forma em 2013, com a criação da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig) no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de São Paulo. O trabalho desenvolvido desde então, com incorporação da ótica de direitos humanos, tem tentado estabelecer uma mudança de paradigma no qual o tema da migração deixa de ser atrelado à questão da segurança nacional. Mas isso traz desafios.


Comitê de Relações Internacionais ABMLuto: Adriana Cogo, Arli Pedrosa, Daniela Aceti, Izabela Guedes, Lucélia Paiva, Maria Helena Pereira Franco, Mario Thadeu Leme de Barros Filho, Patricia Camps, Samantha Mucci, Thaís Fonseca Ares, Vanessa Rigonatti.

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